O Guia do Guru: como é, como ser e como fingir.
A palavra “guru” em sânscrito significa "professor". Mas não no sentido comum do termo. É um professor que aconselha o aluno na vida prática e espiritual porque é experiente e sábio em todas as áreas da vida.
Nas Upanixades, o poeta nos explica que guru é um“dissipador das trevas” e é usada tradicionalmente para se referir a um mestre espiritual, um professor que é um modelo máximo na terra de iluminação, daí o termo.
Esse mestre exige obediência e pode opinar sobre qualquer aspecto da vida do discípulo a fim de botá-lo no caminho correto. Em muitos lugares o aluno inclusive se prostra, beijando os pés do guru. Isso tudo é feito em um clima de respeito e admiração pelo mestre.
Evidentemente, para nós tudo isso soa um pouco bizarro, já que o mestre da iluminação no Ocidente faz o contrário, beijando os pés dos discípulos na famosa passagem bíblica.
Não é estranho também que num contexto escolar comum, o aluno que demonstra admiração é visto como puxa-saco por aqueles que não reconhecem a autoridade do professor. Essa percepção ambígua tem explicação.
O termo aqui passou a ser usado a partir do século XIX como uma referência positiva aos mestres de uma determinada área, um expert, até que os escândalos dos gurus dos anos 70, como o caso Osho, carimbou para sempre a palavra com essa ambiguidade de charlatão e gênio que divide multidões.
Por isso é preciso estabelecer alguns critérios para que não haja a confusão entre uma relação com um guru no sentido estrito da palavra e uma relação com um modelo, uma inspiração.
Isso é importante porque noto que muitas pessoas chamam de “guru” qualquer pessoa influente. Todo guru é influente, mas nem todo influencer é guru.
Digo “relação” porque é VOCÊ, apesar do posicionamento do guru, que aceita ou rejeita as suas imposições. Não há guru sem audiência.
Quer dizer, alguém pode ser o guru de uns, mas não de outros, o que não significa que ele não tenha as características de guru que vou apresentar aqui.
Signifca apenas que aquela pessoa não é um guru para você. Você deve ter outros. Fique tranquilo.
Essas 10 características são um resumo do trabalho que o podcast Decoding The Gurus tem feito nos últimos anos sobre os gurus internacionais, como Elon Musk, Jordan Peterson e Sam Harris – ainda que nem sempre sejam justos e inteligentes na aplicação desses princípios.
Vamos lá:
1) Cérebro das galáxias:
como naquele meme do cérebro expandindo, o guru tem conhecimentos profundos demais para o seu público entender.
Não apenas profundo, mas amplo. Ele domina assuntos vastos demais para a mente pequena do seu público entender.
Ele pode falar com segurança sobre todos os assuntos perguntados e quase nunca diz “não sei” ou referencia outros especialistas ou as fontes das suas afirmações. Tudo o que ele fala tem aquele tom definitivo de quem viu tudo, entendeu tudo e voltou para te contar o resumo, dispensando você de pensar.
Em geral, ele (ou ela) pode fazer afirmações do tipo que vão do “Vocês ainda não estão prontos para isso, mas” ao “Muitos de vocês talvez não entendam, mas”.
O resultado disso só traz vantagens: a maioria jamais admitirá que não tem as qualidades para apreciar a ideia do guru, então ou vai se apresentar como parte da elite ou com vontade de fazer parte dessa elite. Quem reclamar ou discordar entra automaticamente no grupo dos invejosos ou haters ou incapazes.
2) Culto: todo guru é cativo de uma audiência cativa.
Essa audiência não é unânime, mas é dividida entre aqueles que aderem quase integralmente ao guru, os “verdadeiros seguidores”; aqueles que se sentem traídos pelo guru e o acompanham para vê-lo cair ou para serem reconhecidos nas suas queixas (eles querem que o guru se desculpe); e aqueles que estão de fora, como curiosos, admiradores ou fofoqueiros.
Os indiferentes não são parte da audiência, mas o segundo grupo, os “Traídos”, gostam de pensar que são indiferentes.
Do mesmo modo que a audiência é cativa, o guru também é um cativo da audiência.
Ambos sabem que o poder do guru vem dela. Ele precisa cumprir o papel de torná-la especial e destinada a coisas grandes porque ela deposita nele as suas esperanças da solução dos seus problemas de um jeito especial. Guru também sofre.
O guru que fracassa ao atender essas expectativas perde aos olhos da audiência um pouco do seu poder persuasivo. Afinal, “ele é como nós”.
O guru começa dizendo “vocês são demais!” para, depois do sucesso, dizer “vocês ainda não aprenderam nada”.
3) Anti-mainstream:
não importa o nicho, o guru não consegue concordar com quase nada que normalmente se ensina nele. Ele raramente consegue demonstrar o benefício ou as vantagens da abordagem padrão com justiça.
CLT, faculdade, mídias tradicionais, tudo isso faz parte do “sistema” ou da “matrix” da qual o guru escapou e agora traz para você em suaves parcelas o benefício da iluminação.
Do ponto de vista do marketing, é fácil entender o motivo disso: concessão aos caminhos alternativos é enfraquecer o seu método com bom senso.
É tremendamente mais fácil dizer e vender “carboidratos engordam. Pare de comer açúcar” ou “só coma carne” do que explicar os usos e abusos de cada alimento em cada contexto em cada momento.
4) Paranoia:
há sempre um motivo pelo qual as suas ideias e realizações não são mais conhecidas ou mais apreciadas.
É culpa dos “outros”. Esse sentimento de revolta e de humilhação alimenta a motivação do guru e da comunidade para atingir seus objetivos.
É culpa do seu pai que não sabe o que é copywriting. É culpa do seu marido não dar 2 mil reais para o seu curso de social media. É culpa do seu coleguinha do quarto ano que disse que você seria gordo para sempre.
Esse ressentimento é usado como força para você “Calar a boca” de quem duvidou de você.
A ideia de que há um grupo de pessoas conspirando pelo seu fracasso e roubando as suas melhores ideias é ao mesmo tempo uma justificativa para a falta de reconhecimento anterior, mas também um incentivo para que a audiência se esforce mais para divulgar o trabalho do guru.
Nota: não é paranoia se houver DE FATO um grupo impedindo que isso aconteça.
5) Narcisismo:
É impossível ser um guru sem ter um senso de grandiosidade de si mesmo.
Faz parte do papel do guru atribuir a si mesmo uma ideia de missão especial. Desse modo, apenas pessoas especiais podem apreciar essa exclusividade. Ele sabe que é especial ao se apresentar como especial e exclusivo e recebe essa confirmação das pessoas que gostam de coisas especiais e exclusivas. Em geral essas pessoas adoram o desprezo que é necessário para ser especial e exclusivo.
Eles gostam de se apresentar como autossuficientes, como se fossem independentes da audiência, e a audiência gosta dessa superioridade que as lembra de que eles têm o privilégio do acompanhar a vida de alguém tão sublime.
Não é estranho então que eles sejam tão sensíveis a críticas. Elas colocam em dúvida a autoimagem deles.
No entanto, o narcisismo é um traço comum para o sucesso, já que acreditar loucamente em si mesmo e nas próprias ideias dá resultados. Leia “A Sabedoria dos Psicopatas”.
O narcisismo também cria a narrativa de que todo esforço na vida do guru foi providencial para este momento. Não existe sorte. Só tenho que agradecer a mim mesmo por ser tão eu.
6) Complexo de Cassandra: eles preveem o futuro.
Eles sabem qual será a nova tendência, quem será eleito, aonde o mundo vai, qual é o próximo passo etc. Raramente, eles reconhecem quando erraram, mas frequentemente lembram a audiência de quando acertaram.
Nunca pensam que ao dizer que “TikTok será a nova tendência para vendedoras de lingerie” eles mesmos, pela própria influência, estejam criando a tendência. Quando a previsão é negativa, ela poderia ser evitada se a audiência fizesse exatamente o que ele diz.
7) Revolucionário: toda ideia e produto do guru é “game changer”.
Ele nunca jamais produziu algo apenas bom. Ele produz coisas para revolucionar a história. Eles “nunca viram nada parecido antes.” Ou “Pela primeira vez na história do [mercado em que atua]”.
É uma mudança de paradigma atrás de mudança de paradigma. Isso reforça a ideia de que eles estão diante de alguém excepcional, que tem poder para mudar o mundo.
Essa fábrica de revoluções é o que permite ao guru discursar sobre qualquer assunto que a língua humana conseguiu expressar.
8) Bobagem Pseudo-Profunda: a forma que o guru usa para expressar as maiores obviedades ou besteiras PARECE profunda.
Em geral porque ela imita a forma de frases de citação.
Elas são curtas, com rimas e ritmos conhecidos. Às vezes o guru usa essas frases, mas fica bem irritado quando alguém não a entende ou a critica e se recusa a explicá-la com detalhes que possam ser percebidos pela própria frase.
Por exemplo, “foguete não dá ré”.
Note como os monossílabos (não, dá, ré) soam bem juntos e a frase tem uma rima interna entre os “E”s de foguete e ré. O ritmo equivalente das 3 sílabas de “fo-gue-te” e as outras 3 de “não dá ré” também criam essa sensação de frase justa, correta. Chama-se "Efeito Ritmo e Rima".
No entanto, o que ela significa?
No máximo podemos dizer que é um incentivo para não parar nunca. Ou será que é um esforço coletivo enorme para lançar algo grande e seguir com o plano?
Mas analise a imagem antes. Dar ré para um foguete seria uma vantagem. Teria evitado vários acidentes e correções de rotas. (O Falcon 9 da SpaceX dá ré, na verdade).
A metáfora, que os americanos criaram porque eles sim têm história com lançamentos de foguetes, é confusa e só pode fazer algum sentido se você concordar com não o que ela diz, mas o que ela não diz, ou seja, a imagem de subir sem parar. É uma bobagem pseudo-profunda que só faz sentido para iniciados.
9) Conspiração: nada é banal para o guru.
Tudo tem uma história secreta, aterrorizante e intolerável para as mentes pequenas.
Isso não quer dizer que não há muita coisa oculta no mundo, é que o ângulo preferido deles é esse. Mesmo diante de obviedades muito mais perigosas.
Por exemplo, no podcast que gravamos sobre o caso da Balenciaga, comentamos como alguns gurus da imagem aqui e lá fora sacrificaram o bom senso apenas para criar essa narrativa oculta e demoníaca para enfraquecer a confiança que a audiência tem na própria inteligência.
É um mistério que apenas gurus podem decifrar.
Dizer que “Balenciaga” em latim significa “Baal é rei” é pura estupidez. E usar a tradução do Google como prova piora as coisas ainda mais, porque demonstra o quão pouco eles se esforçaram para fundamentar a própria afirmação.
É como assistir ao terrível e verdadeiro documentário “The Little Ones” sobre tráfico infantil e se preocupar com os símbolos ocultos na música de abertura.
10) Lucro: o guru ganha dinheiro. o guru monetiza a sua audiência.
Ei, todo mundo precisa ganhar dinheiro e todo mundo na internet cedo ou tarde vai pedir para você comprar algo. Eu vou te vender algo um dia. As pessoas que você acha que não fazem isso só não estão pedindo para você.
O problema é que o guru diz que não é por dinheiro. É por qualquer outro motivo mais nobre.
Quando digo que “é por dinheiro” não significa que o guru está quebrado ou que ele precisa do dinheiro. Significa que o dinheiro é o elemento central da transação.
Se não fosse por dinheiro, seria de graça. Como é em geral o conteúdo, cujo objetivo não é dinheiro, mas audiência.
Mais ainda: o guru tende a monetizar tudo em que ele bota a mão. Livros, cursos, suplementos, roupas. Tudo.
Ele é um negócio, mas um negócio espiritual, de objetivos transcendentais. Tudo o que é vendido tem uma importância mortal para a sua vida.
É crucial que você compre com o curso Y o suplemento X para aumentar a sua produtividade. “Eu passei anos estudando sobre a biologia humana e depois de centenas de testes cheguei a esta fórmula”. Do mesmo jeito que ele passou anos estudando os outros 10 assuntos que ele domina.
Infelizmente, o resultado desses estudos raramente é um livro, artigo ou um longo curso sem promessas de mudança radical de vida. Não. É mais um produto numa esteira de produtos.
É isso.
Eu abomino a posição de “antiguru”, como se eu estivesse acima das tentações de poder. Ninguém está. Nem você.
Por fim, não é preciso dizer que os gurus geram mudanças positivas na vida das pessoas e são, na maioria dos casos, acima da média naquilo que se propuseram a fazer.
Eles são mais famosos do que nós, mais ricos do que nós e mais persistentes do que nós.
Mesmo querendo não é fácil ser guru.