Todas as artes deveriam ter um pouco de entretenimento. Se você não fica alegre ou triste, se não ri ou chora, se não se sente nem um pouco entusiasmado pelo que está lendo, por que continuar? É para passar no ENEM? (Aí sim, você precisa ler mesmo sem gostar).
Não estou dizendo que esse entretenimento deva ser baixo e apelativo como o anúncio do Kid Bengala para o Burguer King, só para chamar a sua atenção — embora até Shakespeare tenha os seus momentos de novela das 6 —mas uma arte deve ter algo empolgante.
Essa não é nem a minha opinião, mas a do maior crítico literário de todos os tempos, Northrop Frye. Diz ele com a sua cabeça enorme (veja no Google o tamanho da caixa d’água) que a melhor arte deve ter algo de primitivo e popular. E para ser popular, precisamos levar o público em consideração.
Digo isso porque acho que quem gosta de escrever com frequência perde de vista o público.
Se você imaginar o trabalho de um músico, vai ver que embora exista uma etapa solitária de aperfeiçoamento, os ensaios são públicos e as apresentações são públicas. É muito difícil até para os mais autistas ignorarem a sua audiência.
Já o escritor escreve sozinho, entrega o texto sozinho e raramente encontra quem lê seus textos num bar. Seus amigos não vão ler seus textos e essa pode ser até uma vantagem, vai por mim. Então é fácil encontrar um quartinho numa torre de marfim bem distante de qualquer Piscinão de Ramos.
Daí tantos escritores escrevem livros onde o protagonista é um escritor, um poeta ou um professor, fracassado em geral. Escrevem para eles e sobre seus próprios problemas, o que me parece demonstrar uma tremenda falta de imaginação. A maneira de evitar isso, você sabe, é manter o público em mente. Mas COMO você faz isso é mais difícil. Por isso eu proponho que você veja o seu trabalho como uma apresentação num palco. Um show.
“O mundo é um palco” (Shakespeare)
Se você vir o seu trabalho como uma apresentação num palco, você vai concluir também que existe uma parte de improviso em toda apresentação. Há centenas de obras que devem seus melhores momentos a um improviso, das artes plásticas à culinária (petit gateau é o exemplo mais conhecido). Esses momentos em que apesar do plano, algo não sai como esperado e você precisa tirar um coelho da cartola é que tornam emocionante o que você faz, tanto quando você é audiência como quando você é o intérprete.
Digo “audiência e intérprete” porque “criador e consumidor” coloca você em uma posição superior à do público, como se eles abrissem a boca e você despejasse pelo funil a ração. Ver a si mesmo como audiência, alguém que tem expectativas e quer fazer e experimentar algo legal e bem feito, te faz entender a realidade da situação para quem escreve, que é a realidade da parceria.
Esse elemento de improviso exige que você esteja confortável com duas coisas: assumir riscos e fazer descobertas. Risco, porque ao atuar ao vivo você pode falhar. Escrever coisas ruins, por exemplo, o que pode te desanimar e não descobrir como fazer as coisas ruins ficarem boas, que é o antigo normal na história da humanidade.
Mas, ao fracassar você descobre coisas sobre si mesmo e sobre seu público que não poderiam ser descobertas de outra forma. Porque é somente quando você está presente que você desenterra novos textos do país onde as melhores ideias moram (o inconsciente para uns, Deus para os crentes e o LSD para os doidos).
Isso é uma coisa maravilhosa de se experimentar como autor e como espectador. Aqueles grandes momentos arrebatadores da música ao vivo são muitas vezes improvisados, aqueles pedaços autênticos de movimento, gesto e expressão que você vê no palco do teatro ou no texto que você escreveu meio contra o tempo e sem espaço para pensar geram obras que o planejamento não poderia prever.
Não sei como, mas você pode simplesmente perceber a diferença entre coreografia planejada e criação espontânea. Isto é o que torna a experiência ao vivo tão mágica. Do contrário, as pessoas escutariam as músicas em casa em vez de pagar 500 reais no ingresso + alimentação + custos de viagem. Isso é o que prende você no momento e faz com que todo o resto da sua vida desapareça durante a apresentação. Isso é o que você lembrará anos depois.
Mas embora parte desta atmosfera ao vivo não possa ser transportada para a escrita, acredito que você deve se permitir esse improviso e se ver como um artista se apresentando a uma plateia. Eu acho quem escreve tem um fetiche pela atmosfera de isolamento, mas ela é uma armadilha para quem ainda não aprendeu a estar na multidão em casa.
Outra armadilha para quem quer começar a escrever melhor é aprender algumas estruturas e se apaixonar por esse aspecto matemático do ofício.
Agora, não me interpretem mal, essa estruturação é importante e vou falar mais delas em breve. Mas muitas vezes vejo pessoas bitoladas na estrutura que aprenderam e perderam toda a capacidade de improviso. Seus textos seguem uma ordem militar. Suas introduções e conclusões são rígidas como leis do xadrez. São previsíveis e por serem previsíveis são seguros e chatos, como redações de vestibular.
São textos até fáceis de serem lidos, mas impossíveis de serem relidos. Você chega ao final, só não gostaria de refazer a viagem. Porque não houve nem desvios nem surpresas. Em suma, sem espontaneidade.
E isso acontece com mais frequência em textos do Instagram, curiosamente.
Textos que deveriam causar surpresas e reviravoltas para manter a atenção do leitor entediados se tornaram previsíveis. Eu leio a primeira linha e já sei como vai acabar. Às vezes o autor coloca reviravoltas e choca, mas não há nenhuma surpresa real, ou seja, nada que esteja fora do caminho comum pelo qual um escritor leva um leitor naquele assunto. Algo que você pense “não era essa a conclusão que eu esperava!”. Não há espaço para sonhar.
A chave é ter um plano, mas um plano vago.
Comece a ver a sua mesa como seu pequeno palco. Seus instrumentos estão prontos e você tem à sua disposição as duas ferramentas mais poderosas do planeta: um computador e uma cabeça.
O que você vai tocar hoje, caro domador de palavras? Pergunto a mim mesmo em terceira pessoa, mas você pode ser menos ridículo (eu gosto de me ver como alguém inteligente e dono de boas ideias.) Eu hoje gostaria de falar sobre a necessidade de improvisar quando escrevemos. Vou me dar alguns minutos para escrever no papel umas ideias que eu tenho sobre o assunto. Talvez use uma. Talvez use todas. Talvez hoje eu só afine o instrumento. É o que deu para fazer. Nem todo dia é dia de concerto. Isso é tudo que você precisa saber para começar. É assim que eu comecei esse texto depois de receber uma caixinha de pergunta sobre o assunto.
Com esse esboço, você pode se aproximar da mesa para começar seu ensaio e atuar. Você tem muito espaço para se surpreender. Agora escrever pode ser divertido outra vez. Você não precisa ter razão. Só precisa ver no que dá. A gente escreve muita bobagem no Whatsapp o dia inteiro, incansavelmente. Por que não escrever algumas no seu Substack, Instagram ou só no Google Docs mesmo?
Cada dia é uma sessão de 1 ou 2 horas onde sento, digito e vejo o que acontece. Às vezes não acontece nada bom o bastante para atrapalhar o seu “doom-scrolling” e é por isso que essa newsletter não é diária ainda.
Tudo simplesmente aconteceu. Tudo saiu. Porque penso e sonho acordado ao longo dos dias e converso com as pessoas e leio e observo. É preciso ter uma alma porosa, como diz Ortega y Gasset (que por muito tempo eu pensei ser uma dupla). Se disponha a deixar tudo se infiltrar em você.
E então, talvez com um título, uma frase de abertura, uma observação, eu me aproximo do palco que é a página em branco todas as manhãs, respiro fundo e começo a atuar. Algumas vão morrer, outras duram para ver mais um dia ou dois. Um dia alguma vai sobreviver para ver o novo século.
Mas durante esse tempo eu aprendo e melhoro. Não há outra alternativa. A página em branco é um palco. Comece a atuar nela todos os dias e em vez do medo do branco, você sentirá a excitação que antecede a apresentação.
e é sempre maravilhoso ver sua atuação. Obrigada.
Já deixei o link desse texto de fácil acesso como incentivo para minhas aventuras com as palavras. Estava com saudades dessa liberdade do improviso que faz um tempinho que não experimentava desde minha pré-adolescência com os diários com a capa das "Menininhas" da Tilibra. Fazer essa leitura me animou que nem quando comecei a fazer os textos em diálogo logo cedo quando acordo.
Thank u Tchênson s2