Como foi impossível de você ignorar por causa do filme Oppenheimer, você sabe que em 1945 a humanidade liberou pela primeira vez o enorme poder da fissão nuclear nas planícies da Jornada del Muerto no Novo México. Ou “Trinity”, como foi chamada essa primeira apresentação apocalíptica da energia nuclear.
Digo “energia” e já espero que você não pense que logo em seguida eles pensaram em como as usinas nucleares mudariam suas vidas. O Projeto Manhattan tinha o objetivo claro do extermínio geral dos japoneses. Apenas seis anos mais tarde essa energia foi aproveitada para produzir eletricidade pela primeira vez.
Três anos depois, foi lançado o submarino americano USS Nautilus e, pela primeira vez, a energia nuclear foi utilizada para um propósito prático.
Em 1957, a usina de energia com sede na Virgínia, conhecida como SM-1, começou a fornecer energia para a rede elétrica e a era da energia nuclear parecia começar.
Desenvolvida por Lise Meitner e Otto Frisch em 1938, a ciência prática da fissão nuclear passou da teoria à aplicação comercial em menos de duas décadas. A mesma energia que pulverizou Hiroshima e Nagasaki passou a fornecer energia limpa em 12 anos.
Você, mesmo sem conhecimento especializado em energia nuclear, estaria totalmente justificado se acreditasse que essa tecnologia mudaria o mundo.
Era uma revolução que precisava acontecer, inclusive. Tantas guerras no século XX tinham ou como objetivo ou como necessidade para atingir outros objetivos o acesso à energia, leia-se: petróleo, que talvez a história poderia ter sido outra se essa revolução tivesse se realizado.
A energia nuclear é mais segura, ocupa menos espaço e é mais eficiente. O problema é que quando dá errado, dá muito errado. Mas também é assim com aviões e foguetes, em que errar significa morrer. Se falarmos apenas de dados e estatísticas, a energia nuclear era a decisão mais óbvia do mundo para o futuro.
E apesar de tudo essa revolução não aconteceu.
Hoje apenas 10% da geração mundial de eletricidade vem da energia nuclear. Isso não é nada. Mas a tecnologia continua sendo uma revolução que poderia ter sido e não foi. Essa é uma lição de humildade intelectual: não sabemos realmente o que vai acontecer na área da tecnologia — ou em qualquer outra.
Agora você vai me dizer que “As pessoas que se opõem à energia nuclear são idiotas!” Ao que eu digo que provavelmente sim.
Mas o que quero dizer é que mais vezes do que gostaríamos as coisas não acontecem quando temos todos os motivos para pensar que acontecerão.
A estupidez é uma força colossal da história humana. Apostar na adoção em larga escala da energia nuclear teria sido uma atitude muito inteligente, em 1957. Também teria sido uma aposta perdida.
E não é esse o único exemplo.
Quando eu dava aulas de redação em cursos técnicos, conheci alguns estudantes muito dedicados que trabalhavam com impressão 3D. E esses alunos, muito inteligentes, me disseram que, dentro de dez ou vinte anos, milhares de negócios de móveis e utilidades domésticas desapareceriam porque todos teriam uma impressora 3D para produzir seus produtos físicos à vontade.
Eles acreditavam sinceramente nisso e eu como pobre adorei a ideia de fabricar tudo em casa. O resultado? Hoje a adoção de impressoras 3D amadoras de pequena escala disponíveis é quase exclusivamente dos hobbistas (meu sogro tem uma e só lembra dela quando eu pergunto).
Os anúncios de carros autônomos eram tão exagerados há sete ou oito anos que seria ilegal ou estúpido hoje dirigir seu próprio carro. A realidade é que os carros autônomos continuam sendo um nicho pequeno dentro de um nicho ainda menor. (Deixarei para outra edição o caso dos carros voadores, que é mais interessante).
Até esses dias a previsão era de que as redes celulares 5G iriam no mínimo mudar a sua vida para sempre com uma internet na velocidade da luz. Eu nem consigo imaginar como seria baixar um arquivo em 1 minuto e 12 segundos em vez de 30 segundos. Fico imaginando tudo o que eu faria com esses segundos adicionais.
Hoje, mesmo nos locais onde a infraestrutura necessária foi implantada, poucas pessoas conseguem apontar qualquer mudança relevante nas suas vidas, exceto pelos riscos à saúde humana, que ainda não estão claros.
Estou falando disso tudo porque a pergunta que eu mais recebo nas caixinhas de pergunta do meu Instagram é sobre o futuro da inteligência artificial. Eu entendo a preocupação.
Não há uma opinião sensata (a exceção aqui é o nosso grande Diogo Cortiz). Ou ela vai salvar tudo ou vai acabar com tudo. O problema, em parte, é que não há nenhuma vantagem profissional em dizer às pessoas para relaxarem e terem bom senso. Jornalismo é entretenimento. Eles também são criadores de conteúdo e estão no mercado da atenção.
Eu, mesmo tendo um curso sobre o assunto, só tenho a perder dizendo para os meus alunos que só vou falar de tal assunto ou de tal ferramenta quando ela for boa o bastante para ele se preocupar com ela.
O problema é que as pessoas confundem o rápido desenvolvimento de uma determinada tecnologia com a facilidade de prever as consequências da sua adoção.
Como a energia nuclear nos mostra, essas coisas não são nem de longe a mesma coisa. Os seres humanos têm um histórico terrível quando se trata de prever o futuro, e não há razão para acreditar que tenhamos melhorado nisso.
Então IA não vai mudar nada? Já mudou.
Mas a situação tecnológica é esta: embora muitas pessoas acreditem que vivemos num período tecnologicamente revolucionário, a verdade é que o avanço científico humano atingiu o pico entre cerca de 1860 e cerca de 1960. O único lugar onde um progresso enorme acontece foi o da ciência da informação e das comunicações, que é afinal o meio em que trabalhamos e por isso julgamos o mundo à imagem e semelhança da nossa bolha. O mundo físico mudou pouco desde 1960.
Como dizem as pessoas do Vale do Silício, os bits são fáceis, os átomos são difíceis.
Você pode achar que a energia nuclear requer uma enorme quantidade de infra-estruturas físicas para ser implantada, enquanto a IA vive da matéria dos sonhos dos seus criadores. A energia nuclear (felizmente) envolve muita regulamentação e discussão pública, enquanto o desenvolvimento da IA corre praticamente irrestrito. Portanto, com a IA vai ser diferente.
Posso dizer que você subestima o quanto de poder computacional uma IA exige (pergunte a OpenAI quanto ela gasta por mês), mas o problema principal não é esse. Meu argumento é que a história está cheia de imprevisibilidade e que deveríamos ser mais humildes quanto ao nosso poder de previsão, já que o histórico é negativo. A previsão humana mais confiável é que continuaremos fazendo previsões ruins.
Entretanto, isso não quer dizer que você deve ficar sentado e aliviado por ter deixado tantas oportunidades de melhorar o seu trabalho passar. Quero apenas que você se preocupe menos com o futuro da humanidade nos próximos 10 anos e passe a se preocupar com o seu futuro nos próximos 10 meses. Prever a nossa própria vida já dá um trabalhão. Deixe a previsão para os astrólogos da ciência, os que preveem bits e os que preveem genes. A vida deles continua a mesma quando erram.