Uma declaração para a sua esposa no Instagram: conteúdoUma lista de livros importantes de literatura mundial: conteúdo
Um texto contando a sua experiência num rodízio de comida japonesa: conteúdo
Uma foto sua com a pessoa que você ama: conteúdo
Uma playlist de música clássica do século XIX: conteúdo
Casimiro reagindo a um vídeo do Diogo Defante reagindo a um vídeo do Casimiro reagindo a um vídeo de organização de geladeira: conteúdo
Percebem o problema?
Toda forma de expressão humana feita em público nas redes sociais virou conteúdo.
Mesmo se você na sua inocência colocar uma foto com o seu filho recém-nascido, os estrategistas digitais dirão que isso é ótimo porque “humaniza” o perfil e permite que você conte alguma história que gere engajamento como efeito colateral. Você demonstra que é um bom pai e a audiência que são boas pessoas.
Você dirá que fora da internet é assim também. Nem tanto1.
Na verdade, a situação é tão única que não postar se tornou pior do que postar algo ruim, porque, sem conteúdo, é como se você não existisse. Vou para a academia 4 x por semana e acho que nunca postei nada. Para quem me segue, é como se eu não malhasse.
Isso não era nada demais até uns 20 anos atrás. Talvez menos. Quando a internet era um negócio e uma vida que pouquíssimas pessoas tinham paciência para acessar e viver. A internet era o privilégio de uma minoria.
Hoje ainda é uma minoria que vive da e para a internet, mas precisamos reconhecer que a maioria que sonha com isso mas não posta não entra no jogo porque simplesmente prefere a doce promessa de que um dia sairão do anonimato direto para a fama, sem passa pelas vaias sem voz do “curtir” que nunca chega.
São ainda consumidores de “conteúdo”.
Seja como for, para quem quer viver ou ainda vê os outros viverem de internet, o conteúdo virou a matéria da qual somos feitos e com a qual preenchemos cada segundo acordados.
Você sai do Instagram para entrar no Youtube para entrar no Whatsapp e voltar para o Twitter e terminar o dia vendo o centésimo episódio de uma série que já deveria ter acabado na Netflix, que vende conteúdo como filme (já falo disso abaixo).
Como uma gosma cósmica, o conteúdo engoliu a nossa identidade e nossos dias. Hoje somos definidos pelo conteúdo que produzimos. O resto é fumaça e promessa.
Mas nem sempre foi assim.
O DIA 1 DO CONTEÚDO
Quando Tim Berners Lee lançou a primeira página da internet 30 anos atrás, ele não tinha imaginado que as pessoas usariam a internet para ganhar dinheiro falando nome de fruta e vendendo foto de pé.
Aquilo que começou como projeto de pesquisa ao longo dos anos foi se transformando em um meio de personalização. Plataformas como Blogspot e WordPress deram ao povo da internet, bem pequeno à época, a possibilidade de ter uma “página pessoal”. O máximo que você podia fazer no início era escrever, escolher uma ou outra cor e passar o tempo em salas de fóruns, já que quase não havia gente para comentar nos seus posts mesmo. É difícil imaginar, mas as pessoas escreviam e as mais ousadas até liam mais de 2.200 caracteres nessa época.
Era mais um meio “tipográfico” do que social. Era um lugar para escrever coisas e comentar nos textos de outras pessoas, mais ou menos como acontece aqui no Substack. Mas ninguém achava que estava fazendo “Conteúdo2 .
Alguns anos mais tarde você poderia falar com outras pessoas de uma forma mais imediata. A minha alegria como adolescente dos anos 2000, quando comprei o meu primeiro computador (sim, eu mesmo comprei trabalhando como empacotador de supermercado por 1 ano), era voltar do trabalho e usar o MSN. Infelizmente eu descobri cedo que não dava para usar muito a internet se você trabalhasse porque faltava tempo. De qualquer forma, a internet no Brasil era a “discada”, que apenas os ricos usavam de dia porque custavam como ligações. Foi talvez a internet mais lenta já feita pelo homem.
Não dava para baixar músicas e muito menos filmes em menos de 1 dia. Mesmo com o Limewire, um Torrent da época, eram horas e horas para você baixar 1 só música, que nós ouvíamos dezenas de vezes até baixar as outras. Eu e meus amigos dividíamos as músicas de um álbum para cada um baixar e passar para o computador do outro, por meio do jurássico pen drive, assim poderíamos ouvir o novo álbum de uma banda em apenas uma semana em vez de 1 mês3.
Eu não preciso dizer que nem se viciar em pornografia era fácil, porque era praticamente impossível baixar um filme e apenas os mais devassos iam até LanHouses noturnas para satisfazer sua fome de nudez.
Até a internet era “coletiva” e física nessa época, porque apenas esses lugares tinham uma internet rápida o bastante para você se viciar nela, mas era um vício com hora para acabar pois você comprava as horas de uso do computador (pagávamos 1 real por hora).
Novamente, ninguém produzia “conteúdo”. Até que veio o Facebook.
O BOTÃO E O ALGORITMO
O Orkut foi uma criação turca que deu mais certo aqui do que lá. Eu gostava do Orkut. Seduzi minha esposa por lá. Tenho uma história com a rede. A estrutura de fóruns dava uma organização que só o Reddit conseguiu recuperar. Eu não me lembro de na época alguém querer ser “criador de conteúdo”. Ninguém estava produzindo conteúdo intencionalmente para ser alguma celebridade. Mesmo querendo contar mais sobre a minha experiência com o Orkut (eu adorava o fato de no início você poder ter 10 fotos no máximo), foi o Facebook que mudou tudo. Mais especificamente a invenção maravilhosa do senhor Justin Rosenstein.
Em 2007, esse engenheiro ingênuo criou o botão de “curtir”. A ideia dele era motivar as pessoas a postarem mais coisas positivas na rede. Você posta, alguém “curte” e demonstra o quão feliz está pela sua postagem. Antes dele, o seu feed era meio chato e poucas pessoas se preocupavam em atualizar a gente de suas nobres ocupações diárias. Isso acabou ali. E para sempre.
Ele não previu que ao introduzir essa ferramenta ele tinha criado também um sinal de status: postagens com mais curtidas agora são MELHORES do que as com poucas curtidas. Zero curtidas: ninguém gostou do que você postou. Mais curtidas do que a postagem do seu cunhado: você é a melhor pessoa do mundo. O “curtir” deu uma métrica para separar um “conteúdo” do outro.
Bem depois toda mudança de “status” poderia ser curtida também. Foto nova, mudança de emprego, casamento, tudo virou um “conteúdo” a ser curtido e usado como métrica de avaliação do quanto seus seguidores gostaram da sua mudança. Estavam dadas as condições para criar a geração mais ansiosa do planeta terra.
Justin Rosenstein não gostou muito do que inventou e deletou suas redes sociais e prega como um doido em cima do caixote na praça que devemos abandonar toda a vida cibernética. É uma pena que ele precise da internet para fazer isso.
Já no Facebook não houve arrependimento. Ao contrário. Houve aperfeiçoamento. Com o curtir agora você poderia separar os deuses dos ratos. Mas mesmo assim, o feed era cronológico, mostrando as postagens por data e não por relevância. Era preciso algum mecanismo, alguma mágica, algum grimório antigo que pudesse escolher e mostrar para as pessoas aquilo que elas querem ver sem a parcialidade do ser humano.
Entra o algoritmo.
Poucas pessoas realmente sabem como ele funciona, o que dá uma aura de artefato pagão proibido, mas todo mundo gosta de prestar sacrifícios no altar desse deus desconhecido.
O seu objetivo é decidir o que é relevante para você ver com base naquilo que você viu. Ele pressupõe que você quer mais daquilo que você gostou. Ele quer mostrar para você conteúdos “relevantes” que te façam ficar mais tempo na plataforma, para apresentar mais anúncios para você comprar mais coisas.
A sua missão final é justamente fazer você viver lá — como o Metaverso está aí para dar um trailer das últimas consequências desse jogo — consumindo e produzindo conteúdo para toda a eternidade.
Conteúdo. Conteúdo. Conteúdo.
Mas, o que afinal é conteúdo?
Conteúdo e mau conteúdo
Se você está com a terapia em dia, podemos considerar que o que Homero, Picasso e Thomas Mann faziam não era “conteúdo”, ao menos na maior parte do tempo.
Então que estamos fazendo aqui?
Eu sou uma das poucas pessoas que defendem que conteúdo é a mesma coisa que anúncio. O meu argumento é o de que ambos têm a mesma natureza transacional4. É um processo. É algo que fazemos para produzir um resultado. A pessoa que faz conteúdo não está interessada no conteúdo, mas no resultado que o conteúdo vai trazer. O conteúdo é um mero procedimento que ela precisa fazer para obter a ação desejada. Se é com textos ou reels ou lives de NPC, tanto faz. O conteúdo quer algo de você.
O criador de conteúdo profissional não está tão interessado em fazer um bom conteúdo quanto está em fazer VOCÊ gerar um bom feedback, com curtidas, comentários e, nos melhores casos, dinheiro. No final, é isso que determina um bom conteúdo: a resposta pública. Por isso, se ele for bonzinho e seguir as regras, os deuses da plataforma vão recompensá-lo com uma colheita farta.
Até aí nada de errado. Sem ironia.
Eu já fiz conteúdo para mim e para os outros com essa intenção transacional. Como vamos ver abaixo, eu acho que é até uma necessidade mesmo para quem quer mais do que só conteúdo e dinheiro. Mas eu não acho que você deve confundir “conteúdo” com “obra”, que é razão desse ensaio como vamos ver logo a seguir, porque disso depende a sua saúde mental, financeira e espiritual.
O meu problema é com o mau conteúdo, o conteúdo disfarçado de boas intenções, cheio de terrorismo emocional.
Porque o conteúdo, sendo um processo, cria uma visão de mundo. Nessa visão do mau conteúdo “todo mundo está produzindo conteúdo e todo mundo tem sempre algo a vender”. Todos nós estamos à venda, eis o que o mau conteúdo diz.
Pode ser que seja verdade, mas essa perspectiva cria um mundo mais difícil para todos nós, um em que os bons e maus fazem a mesma coisa pelos mesmos motivos. Um mundo assombrado pelo cinismo. E eu acho que essa é uma das características do mau conteúdo. O mau conteúdo é cínico e diz para você que está tudo bem ser cínico também porque esse é o jogo. Não há nada lá fora além de ser mais esperto do que os outros e tomar o dinheiro deles antes que eles descubram o nosso disfarce. Outras características são:
Autoridade aparente: no mau conteúdo, não existe nem “eu” nem “eu acho”. Eles usam frases como “O copywriting é”, “o jeito certo para você fazer isso é”, “você não precisa aprender isso para”, quando na verdade eles querem dizer “na minha opinião”, “eu acho que”. Claro que se o tempo todo a pessoa disser “eu acho”, vai ficar chato de ler, mas você vai notar nessas pessoas como é frequente o uso dessas frases para dar uma autoridade que elas não têm num assunto que elas não dominam simplesmente removendo o “eu” do conteúdo. Elas precisam desesperadamente soar como autoridades, daí, por exemplo, a invenção de “métodos” com nomes científicos do tipo “MÉTODO XT3” que são apenas mecanismos de marketing. Eles precisam parecer especialistas para se tornarem especialistas.
Meta-conteúdo: é aquele tipo de conteúdo que tem como objetivo apenas falar sobre como outro conteúdo é importante. Conteúdos do tipo “o que você pode aprender com a derrota do Brasil na Copa do Mundo?” ou “o que eu aprendi com [fulano importante que tem a audiência que você quer]” são meta-conteúdos. Ele é o tipo de conteúdo mais vampiresco da internet. A pessoa não cria um conteúdo novo ou uma explicação melhor para o porquê de aquele assunto ter ganhado fama. Não, ela quer apenas se aproveitar de qualquer coisa que naquele momento capture a atenção das pessoas e colar o seu rostinho no canto da tela, muitas vezes sem QUALQUER relação com quem ela quer ser na internet5.
Aparente desinteresse: é uma autopromoção disfarçada. Sabe aqueles conteúdos que te prometem ensinar algo, mas daí, lá para o final do vídeo, você não aprendeu muita coisa, então você descobre que ele só dá a solução no curso? É isso. O conteúdo não foi feito para te ensinar nada, mas para te vender algo. Ele de propósito calculou a dose exata para te deixar ansioso com a irresolução do problema. Nas caixinhas de pergunta isso é clássico. A pessoa começa a falar de um problema como se fosse a coisa mais importante na história da humanidade e você fica pensando quem vai nos salvar dessa calamidade. Oh, quão conveniente é descobrir que é o mesmo influenciador quem traz e quem dissipa a peste! Muitas vezes essas pessoas criam polêmicas e expressam opiniões de um jeito vago e sem contexto porque SABEM que isso vai gerar comentários e dúvidas nos comentários.
Não tenho nenhum problema com pessoas que vendem seus cursos nem com quem diz que essa solução SÓ pode ser resolvida no curso porque é ampla e difícil. O mau conteúdo, no entanto, te engana, dizendo que você pode sim resolver esse problema. “Como fazer 100k com mentorias com esses 3 passos simples”, mas você descobre que não é nada simples e só a pessoa que criou o carrossel pode resolver esse problema para você.
Escorregadio: o único propósito do conteúdo é fazer você assistir até o final. Como você já sabe, as plataformas vivem de propagandas e dependem de que as pessoas fiquem bastante tempo nelas. Como elas ficarão bastante tempo nelas se não houver conteúdos fáceis de consumir? Essa característica do mau conteúdo é cheia de truques para fazer com que a outra pessoa se “vicie” (a quantidade de promessas de marketing prometendo fazer as pessoas “se viciarem” no seu conteúdo me leva a questionar se esse não é o momento de fazer um Uma Noite de Crime: Edição Marketing Digital). Parágrafos curtos, muitas transições, frases que não fazem o menor sentido, memes, tom de voz de Youtube (um termo técnico agora) e outras coisas que quando você termina o vídeo, se você pensasse, se perguntaria “mas que que aconteceu aqui? O que eu aprendi?”.
A pessoa não vê o vídeo ou lê o texto porque algo realmente interessante foi dito, mas porque você por meio de truques da atenção fez com que ela chegasse ao final. Você fica feliz porque as pessoas terminam o vídeo, a plataforma fica feliz porque as pessoas terminam o vídeo e podem fazer mais anúncios e as pessoas talvez até fiquem felizes porque terminaram o vídeo. Mas certamente elas não ficarão felizes quando virem quantos vídeos sem o menor sentido elas viram, o quanto aquilo agregou à vida delas e quanto tempo perderam. Para sempre6. O Tiktok talvez seja o melhor exemplo disso.
A falta de cuidado artístico: o mau conteúdo NEM TENTA ser bom. Não existe nenhuma intenção para subverter o meio ou oferecer alternativas ou mesmo reclamar do meio. Eu nem me lembro de ter visto alguém abertamente “antialgoritmo”, propositadamente fazendo tudo ao contrário. Não há nem cuidado nem uma violência contra o algoritmo. O conteúdo é apenas “ok”.
Não há nem uma tentativa de posição pessoal levemente contracorrente. Há apenas uma sujeição ao meio. “É o jogo”. Você gosta porque parece com tudo o que você já viu, mas com um rosto e uma cor diferentes. No fundo, num teste cego, seria impossível separar o joio do trigo. É por isso que é um conteúdo que envelhece muito mal. Nem para repostar serve. Não havia ali nenhum outro propósito a não ser preencher um dia com uma imagem, um texto, um vídeo.
Você deve ter notado que a maior parte desse “mau conteúdo”, além de poder ser identificado no próprio texto ou vídeo ou qualquer coisa que seja, é uma questão de escolha, é uma intenção. O criador ESCOLHEU fazer as coisas dessa forma porque lhe pareceu uma decisão mais segura. Ele não é obrigado a fazer conteúdo dessa forma, mas é o único jeito que ele conhece. Porque é isso que o povo quer. Em troca disso, estão dispostos a abrir mão de tudo. Até de fazer algo bom.
E, sabe, as pessoas não são tão idiotas assim. Elas sabem quando veem alguém que está no mínimo se esforçando para fazer algo diferente. Elas podem dizer até “ah, os textos são longos e tal”, mas elas sentem que estão diante de uma presença mais sólida, de alguém que não cede com facilidade. Alguém que além de conteúdo, está construindo uma obra. E é disso que vamos falar agora.
Obra & Conteúdo
Quando eu tinha uma banda, nós sempre tínhamos CDs e camisetas para vender. É uma parte chata para o artista mas também necessária (se você acha que seu artista favorito não faz isso, é porque o setor de marketing está fazendo isso por ele, não se iluda). Você acha que o show era o conteúdo para vender camisetas e CDs? Os marqueteiros de hoje acham que sim. Eu discordo, desrespeitosamente, de todos eles. O show era a nossa obra. Nós não fizemos músicas para vender CDs e camisetas. Nós fizemos músicas porque queríamos criar algo importante — ao menos para nós mesmos. Para sustentar essa essa obra é que vendíamos CDs e camisetas (e trabalhávamos em outros empregos porque rock não dá dinheiro no Brasil).
Entende a diferença?
Pense no omakasê.
O omakasê é um especialista que te guia por novos sabores da culinária japonesa e te ensina coisas inesperadas sobre a história do que você está comendo. Num rodízio não é assim. Ele traz o que você quer em quantidades monstruosas até você se entupir e prometer de novo nunca mais fazer isso (até o VR do mês seguinte).
O rodízio é a produção de conteúdo; o omakasê é a construção de uma obra. Ninguém lembra de quem fez as comidas de um rodízio, mas todo mundo se lembra do omakasê7.
Antes de as livrarias e os sebos desaparecerem na última Era do Gelo, você também tinha essa figura do leitor mais experiente, que vendia e te ensinava ao mesmo tempo como ler melhor, descobrir autores que você não imaginava e contava histórias que a Amazon nunca será capaz de contar. Essas pessoas hoje são algoritmos.
Também é comum na história dos artistas fazerem “conteúdo” para sustentar a sua obra. Na história recente de cineastas, como Martin Scorsese e Francis Ford Coppola você vê isso. Martin Scorsese fazia filmes de estúdio para pagar seus filmes autorais.
Ele chamou esse “framework” de “Um para eles, outro para mim”. Era basicamente a ideia de ceder aqui para ganhar ali. Para ele, esses filmes eram “conteúdos”, sua finalidade era financiar a sua obra. Por isso ele mesmo chama os filmes blockbusters hoje, como “Os Vingadores” e outras séries da Netflix, de “conteúdo”. O objetivo desse tipo de filme não é o filme, é vender a continuação, as camisetas, os brinquedos, o parque temático. Por isso não é segredo o lixo que esses últimos filmes da franquia se tornaram. Absolutamente inassistíveis. Piadas.
O mais importante: o Martin Scorsese sabia quando estava fazendo conteúdo e sabia quando estava construindo a sua obra e abominava o mau conteúdo desses filmes de heróis, que nem tentam ser bons, são cínicos e só querem vender a próxima sequência.
Então quando alguém disser que é “criador de conteúdo”8, você deveria se perguntar “para quê?” O seu conteúdo está sustentando qual obra sua? A maior parte dos gurus não tem nenhuma obra. São famosos por gerarem em nós a vontade de ser como eles. Se você pensar até naqueles que alegam ter uma obra educacional, você vai voltar de mãos vazias se procurar as obras. Nem os slides do próprio curso eles fazem (experiência pessoal). Seus livros são escritos por ghostwriters (eu mesmo já escrevi uns). Eles estão no negócio do “engrandecimento pessoal”, como diria o Gary Halbert.
Se você não se importa em fazer conteúdos cada vez degradantes, mais curtos e mais fáceis para ter cada vez mais pessoas menos exigentes gastando cada centavo nos seus produtos que poderiam ser um vídeo de 30 minutos e depois pedindo reembolso porque gostariam que fossem ainda mais fáceis, seja um “criador de conteúdo”.
Idealmente você não quer produzir conteúdo, mas produzir a sua obra. Uma obra é algo que você constrói e descobre ao mesmo tempo. É uma pergunta íntima e uma necessidade inexplicável de fazer certas coisas de um jeito específico. Você precisa gravar seus filmes, escrever seus livros, lançar seu aspirador de pó ou inventar um novo celular porque você sente que é a obra da sua vida. Ninguém está esperando isso de você. Ninguém pediu para você se esforçar tanto por isso. Você faz porque você precisa e é isso o que você quer trazer ao mundo: um presente. Algo que fica em pé mesmo quando tudo ao redor parece ruir.
Não se iluda, porém.
Para ficar em pé você terá que produzir conteúdo também. “Um para eles, outro para mim”. Um bom conteúdo, pelo menos. Você vai ter que ceder sem se perder; descer na lama sem se sujar. Nos seus melhores dias, talvez você até encontre um novo formato de conteúdo ou aperfeiçoe um antigo. Você precisa estar consciente de que o que você busca com esse conteúdo é sustentar a sua obra.
Não se engane nem engane os outros. Essas são as circunstâncias hoje para o intelectual, para o artista ou para o empresário criativo. Saber fazer e saber se autopromover. Isso vale até para os grandes, como Elon Musk e Steve Jobs. Ambos grandes vendedores de si mesmos. Você não pode ter vergonha de vender algo que custou tanto esforço para você produzir. Não precisa ser tímido com o seu sangue nem com o de quem depende de você. Mas você vai ter que fazer o show e vender as camisetas sem se esquecer de que o propósito é o espetáculo.
Logo, há esperança. Só ter essa consciência já vai te libertar.
Conhecer a diferença entre esses dois domínios já vai te dar uma clareza que até então eu não vi ninguém se esforçar para dar. E essa é a natureza da “Obra”. Repito: ela é um presente. Ninguém me pediu para escrever esse texto. Eu escrevi porque eu quis e porque eu precisava expressar certos problemas para que eles ficassem mais claros para mim e talvez para você. Eu não peço nada em troca. Pensando bem, eu nem deveria ter escrito isso.
Qualquer coach diria que estou investindo demais em algo que não vai dar nenhum retorno. Mas eu quero mais do que só dinheiro. Se você ler e gostar, é um bônus. Eu quero ser lido, quero ensinar e quero alcançar mais pessoas, mas a indiferença não vai me impedir de continuar o que eu estou fazendo aqui. Essa é a minha obra9.
Fora da internet as pessoas também encontram seus filhos e ficam entusiasmadas, mas nunca no volume que você vai encontrar na internet e raramente com os comentários que elas fazem nos posts.
Para você ter ideia, o livro “Trabalhe 4 horas por semana” só seria lançado 7 anos depois e aí sim todo mundo já produzia “conteúdo”.
Essa é outra coisa que desapareceu: se reunir com os amigos para ouvir música — e só. Não havia nenhum outro propósito ou meio de distração, como colocar a música de fundo para mexer no celular enquanto passa um filme na TV.
É como o dinheiro. É uma transação entre algo que é valioso para você para ter algo que na sua opinião vale mais. Toda transação econômica é uma luta de desejos. Falamos de oferta e demanda, mas na verdade só existe demanda, não é? A partir de certo ponto eu quero mais o que estou vendendo do que o dinheiro que você está oferecendo. Exemplo: se eu quero vender meu carro por 50 mil reais e você quer pagar 40 mil reais, eu não vendo. Eu prefiro ficar com 0 reais a receber menos do que eu desejo receber por esse carro. Ou seja, a minha demanda é maior do que a sua. Eu quero mais o carro do que 40 mil reais.
É claro que às vezes o assunto da mídia em questão é importante para a pessoa ou para o nicho. Estou me referindo aos conteúdos criados com o único propósito de “hypar”. Quando a pessoa não tem nada relevante para acrescentar, mas “precisa” para não perder a oportunidade de o algoritmo abençoá-la com likes. O extremo desse conteúdo é aquele tipo de react em que a pessoa fica apenas no canto da tela concordando impressionada com o vídeo em questão. É o puro chorume da internet.
No marketing digital existe esse fenômeno da pessoa que é claramente viciada em consumir conteúdo, mas que justifica que é tudo “pesquisa”. Os social medias são o exemplo típico. A maioria está absolutamente perdida porque não percebem que mais do que “acompanhar as trends”, é preciso “criar as trends”.
Sim, o valor é proporcional. Acho que você já entendeu o princípio do “high ticket”, não é? Claro que é sempre assim e que há vários artistas que cobram bem abaixo do que deveriam em relação a uns produtores de conteúdo. Mais curioso no entanto é que omakase significa "deixarei [a escolha] por sua conta". A expressão provém de uma composição do verbo "confiar”.
Eu sei. Eu vendo um curso de Inteligência Artificial para Criadores de Conteúdo. Espero que você entenda que isso é “copy”. Se eu pedir para a pessoa ler tudo isso para depois comprar o curso, eu não teria vendido nada. Ela não precisa aceitar uma nova crença para aprender sobre inteligência artificial. Seria um erro amador da minha parte. É uma concessão que eu faço para ser entendido.
Todos os meus cursos são livros que os meus alunos me ajudam a escrever.
Esse texto, sim, é uma obra. Uma obra que todo figurão da internet deveria acessar e refletir. Foi um "tapa na orelha" pra mim, e espero que seja pra cada pessoa também.
Ao mesmo tempo que fui educado ao terminar cada parágrafo, fui ganhando ânimo pra construir "algo maior" na Internet.
Ótimo ensaio!
Eu já tive uma banda e fazíamos música porque gostávamos de música boa. Porque era nosso momento. Porque gostávamos daquele frio na barriga do palco. Fizemos camisetas e CDs completamente à contra gosto. Participávamos de alguns acústicos vergonhosos porque precisávamos de melhores instrumentos e bandas não são bem remuneradas.
Quando a sua analogia "me atingiu", quase dá para dizer que saí de um transe.
Caramba, quando foi que esqueci disso? Que os empecilhos para construir a minha obra me tornaram tão cínico e tão imerso na lama?
Acho que são coisas que preciso pensar e colocar a cabeça de volta nos trilhos.
Obrigado por este texto, Rafael.